Wednesday, March 08, 2006

Debate sobre Vegetarianismo

Olá, amig@s das redes.
Permitam-me ampliar no espaço uma reflexão que surgiu na Rede Brasileira de Educação Ambiental, originada a partir da minha apresentação da entrevista do Presidente da Eslovênia sobre vegetarianismo, a qual eu havia encaminhado à rede. Na apresentação eu dizia:
"Encaminho a entrevista do presidente da Eslovênia sobre a dieta vegetariana e nossa relação com os animais. Acho interessante que um chefe de estado dê este relato, mostrando a penetração na política de almas sensíveis e compromissadas com o futuro".
Esta apresentação gerou o questionamento de uma educadora socioambiental, que argumentou o seguinte:
"Filipe, desculpe, mas de acordo com a tua colocação sobre o presidente - "mostrando a penetração na política de almas sensíveis e compromissadas com
o futuro" - você quis dizer que ele, defendendo o vegetarianismo e os direitos dos animais, tem alma sensível e compromissada com o futuro?

Aí fica a minha pergunta: quem come carne, não é vegetariano, por acaso tem alma insensível e não é compromissado com o futuro?

Se for isso que você realmente pensa, fica outra pergunta: onde está a tolerância com o diferente, o respeito pela escolha alheia? O entendimento que as pessoas tem diferentes visões e diferentes significações na sua vida cotidiana? Penso eu que, sem isso, os educadores e educadoras não tem como ir muito longe, não..."
Segue então a minha resposta a ela e à rede. Considero este um tema de grande importância e conectado com todos os outros temas referentes à sustentabilidade humana e planetária. Assim justifico este encaminhamento.
Saudações fraternais,

Filipe Freitas
"Se você diverge de mim, não é meu inimigo. Você me completa."
D.Helder Câmara

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Prezada Renata e amig@s da REBEA,
Considero oportuna a sua colocação e surge então um bom momento para refletirmos sobre o consumo de carne. Peço licença para uma mensagem um tanto longa.
Pessoalmente não sou radical neste assunto, não saio por aí incriminando as pessoas carnívoras, culpando-as por grande parte do solapamento dos ecossistemas terrestres, pois tenho a percepção de que se trata de uma herança cultural muito antiga, talvez um milhão de anos, ou mais, que viemos nos alimentando de animais. É importante salientar que nesses um milhão de anos tivemos pelo menos 17 glaciações, o que diminuía radicalmente a disponibilidade de vegetais nutritivos. Nessas circunstâncias, se alimentar de carne ganha uma conotação bastante diferente.
Independentemente das causas de nossa transformação da dieta - de herbívoros, tais como nossos ancestrais primatas, a carnívoros - é longo o caminho da nossa história em que nos alimentamos de carne. Portanto, não será de uma hora para outra que vamos mudar nossos hábitos alimentares e temos, realmente, que ter tolerância em relação a este fato.
Mas estamos em reflexão em ambiente de educadores ambientais e, portanto, fomento uma maior amplitude de compreensão das implicações do consumo de carne na atualidade.
Vamos a alguns fatos:
Atualmente temos quase o mesmo número de bois e vacas que seres humanos na Terra. Estima-se em mais de cinco bilhões o número de bovinos habitando o planeta atualmente. Pensemos: se cada boi precisa de, no mínimo, meio hectare de terra (no mínimo mesmo, pois a fazenda tem que ter pastos excepcionais e ser altamente produtiva, fazendas convencionais costumam trabalhar com uma cabeça de gado por hectare), precisaremos de, no mínimo, aproximadamente, 3 bilhões de hectares de terra para pastagens. Se pensarmos que são 9 bilhões de hectares de terra produtiva que existe na Terra, imaginemos o impacto ambiental dessas pastagens que exterminam com a diversidade biológica dessas áreas...
Nossas florestas estão virando pasto em um ritmo muito intenso. Aqui em Minas Gerais, o problema é agudo. Não é à toa que as pessoas costumam dizer que "as minas viraram pastos". É importante saber que aquele bife de alcatra que uma pessoa coloca no prato tem um sabor camuflado de floresta (boa parte deles tem sabor de floresta amazônica). A soja, que é também uma das grandes responsáveis pelo desmatamento no Brasil, é plantada principalmente para alimentar bois, saibamos disso. O dematamento acarreta efeito em cadeia nos problemas climáticos. Tudo está interligado. O consumo de carne é hoje, seguramente, um dos maiores problemas ambientais do planeta. (Para aprofundamento neste tema, segue abaixo um artigo do jornalista Washington Novaes sobre os impactos ambientais do consumo de carne.)
Muitas pessoas, todavia, não tem essa compreensão. Portanto, há muitas almas sensíveis e compromissadas com o futuro que, sim, comem carne. Mas nesse caso é por ignorância, no sentido mais puro e menos pejorativo do termo.
Alguns poderão dizer, "mas carne é fundamental para a saúde". Isso é uma falácia. É um argumento utilizado por aqueles que não querem parar de comer carne. Também são frutos de pesquisas subsidiadas por produtores de carne e frigoríficos. Quem foi ao Congresso Mundial de Vegetarianismo acontecido em Florianópolis há pouco tempo teve acesso a uma grande quantidade de estudos que desmentem incisivamente esta afirmação. Dou o meu exemplo.
Eu, que tenho sangue tipo O, que na medicina ortomolecular sugere ser o tipo de sangue mais carnívoro, não como carne há três anos e nem por isso fiquei fraco, anêmico, etc. Pelo contrário, minha vitalidade aumentou. Nossa dieta é excessivamente proteica e os vegetais são mais do que capazes de nos suprir com todos os aminoácidos, açúcares, lipídios e vitaminas que precisamos.
Agora chego ao ponto que, para mim, é o cerne da questão.
A espécie humana, em sua peculiar visão cultural antropocêntrica, costumeiramente imaginando que é a Terra e os seres da Terra que têm que se adaptar a nós, e não o contrário, tornou-se uma espécie escravocrata por excelência e radicalmente insensível ao sofrimento de outros seres vivos.
Apoderamo-nos dos animais e fazemos com eles barbaridades impressionantes. Porcos que nasceram para fuçar a terra, hoje já não fuçam mais, pois vivem enclausurados em ambientes de cimento, superlotados. Galinhas que nasceram para ciscar a terra, hoje já não ciscam mais, pois vivem amontoadas em granjas, tendo, inclusive, seus bicos decepados para evitar que se matem umas às outras no desespero da falta de espaço. Bois estão cada vez mais em regime de confinamento nos quais são impedidos de andar para preservar sua carne macia e suculenta. E por aí vai...
É uma carnificina sem precedentes.
Portanto, não é a morte dos animais o que me toca, mas a vida dos animais. O que estamos fazendo com os animais é intolerável. Vacas e porcos, por exemplo, são mamíferos. Tem um sistema nervoso bastante desenvolvido e, consequentemente, uma estrutura emocional e uma sensibilidade aguçadas. Atualmente são nossos escravos. Desde o nascimento são encaminhados a uma rotina de profundo sofrimento e a certeza de uma execução fria e sanguinolenta.
Neste contexto, o argumento de boa parcela dos vegetarianos de que não podemos matar um animal para comer é, na verdade, muito frágil. Afinal, a vida na Terra está há quatro bilhões de anos em evolução com os seres vivos em um processo contínuo de substituição química, uns se alimentando dos outros. A morte dos animais é, portanto, um argumento frágil pois retrata uma dinâmica própria da natureza. Além disso, ao comermos uma mandioca ou uma cenoura também estamos matando um ser vivo. E por que não devemos considerar este ponto de vista, visto que há estudos mostrando a grande sensibilidade vegetal (vide "A Vida Secreta das Plantas", de Peter Tompkins e Christopher Bird, Editora Exped)?
Por conseguinte, não é a morte, mas a vida dos seres da Terra que uma alma sensível deve prezar e trabalhar para dignificá-la. Se alimentar de carne hoje é fechar os olhos para esta realidade e compactuar com um sistema de crueldade acintosa.
Afirmo isso em comunhão com a Terra Vivente. Quem sabe chegaremos a um estágio espiritualmente mais elevado quando nos alimentaremos somente de frutos e sementes, as dádivas que a natureza nos oferta diariamente?
Recomendo a todos os educadores ambientais o filme "A Carne é Fraca", do Instituto Nina Rosa (www.institutoninarosa.org.br), para uma visão mais lúcida do que significa um singelo filet, salsicha ou peito de frango no prato de cada dia.
Deixo aqui registrado que nem toda carne é tão impactante assim. Existe hoje oferta de "carne orgânica" que talvez amenize o quadro de devastação ambiental e espiritual do consumo de carne para aqueles que tem dificuldade de modificar a dieta. Um quilo de carne orgânica custa em torno de trinta, quarenta, cinquenta reais aqui em Belo Horizonte. É o custo mínimo para embutir os danos ambientais da produção.
Pescar artesanalmente também não é uma prática tão impactante (notemos a diferença entre a pesca artesanal e a indústria da pesca!). Se não conseguimos deixar de comer carne, ao menos podemos comer carne com responsabilidade e lucidez.
Agora, saber as implicações do consumo de carne e continuar comendo carne sem se preocupar com este ato é, sim, em minha opinião, insensibilidade e falta de responsabilidade pessoal para com as atuais e futuras gerações.
Renata, você me perguntou sobre a tolerância, o respeito com a escolha alheia. Reflitamos todos sobre nossas escolhas. Entre o nosso deleite individual e a harmonia da biosfera, o sistema que, queiramos ou não, é o nosso lar, o nosso corpo, e do qual dependemos inteiramente para nossa sobrevivência.
Fraternalmente,
Filipe Freitas

FRAQUEZAS DA CARNE

No mesmo dia em que o anúncio de um caso de febre aftosa no Pará levava alguns países a suspender as compras de carne bovina brasileira, as agências de notícias informavam sobre a morte de uma jovem nos Estados Unidos, a primeira vítima humana naquele país da encefalopatia espongiforme bovina (“doença da vaca louca”), que já matou mais de 140 pessoas na Inglaterra em poucos anos e 18 só no ano passado. Outras 16 mil pessoas podem estar infectadas nesse país, mas ainda sem sintomas, segundo estudo do governo inglês.

No mesmo dia, a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, e a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) decidiram juntar esforços diante do aumento preocupante de “doenças transfronteiriças” como a aftosa e a “gripe das aves”, motivado, segundo elas, pelo comércio internacional de carnes e pelos deslocamentos humanos. As duas organizações decidiram criar um sistema mundial de informação e alerta nessa área. Pondo mais uma vez em evidência a extensão e a gravidade do problema da segurança alimentar no mundo.

E isso ocorre no momento em que o Brasil assume o lugar de maior exportador de carne bovina, graças, inclusive, a uma expansão de 200 mil hectares nas áreas de criação. No ano passado, já foi exportado 1,4 milhão de toneladas de carne bovina, no valor de US$ 1,5 bilhão. E US$ 1,79 bilhão em carne de frangos, 20% mais que no ano anterior. A expansão da carne bovina brasileira prossegue este ano, com mais 19,5% em quatro meses. Para assegurar essa posição, o País mantém hoje um plantel de 185 milhões de cabeças de gado bovino e 180 milhões de galinhas (fora 32 milhões de porcos).

A mesma FAO estima que um terço das exportações mundiais de carnes esteja hoje sob ameaça de doenças. Canadá e Estados Unidos têm problemas. A Tailândia abateu 36 milhões de aves; o Canadá, 19 milhões. A “gripe das aves” já atingiu também a China, a Coréia do Sul, o Paquistão, a Indonésia, o Vietnã, o Japão, Taiwan, o Laos e o Camboja.

A produção mundial de carnes chega hoje a quase 250 milhões de toneladas – o dobro do que se produzia em 1997. Em meio século, multiplicou-se por cinco. Os rebanhos bovinos passaram de 3 bilhões para 5 bilhões desde 1960 (mais 60%); os plantéis de aves, de 4 bilhões para 16 bilhões de cabeças (mais 300%).

Aí começa outra complicação: a insustentabilidade dos atuais padrões de produção e consumo no mundo, apontada em vários relatórios e comentada neste espaço. Esses padrões já levam a um consumo mais de 20% além da capacidade de reposição da biosfera. E se concentram em quase 80% nos países industrializados, que têm menos de 20% da população mundial – ao mesmo tempo em que metade da população do mundo vive abaixo da linha da pobreza e 840 milhões de pessoas passam fome. E a população mundial ainda crescerá entre 2,5 bilhões e 3 bilhões de pessoas até 2050.

E ainda há outros ângulos do problema. Gerar uma caloria de carne de boi, porco ou frango, por exemplo, exige de 11 a 17 calorias de alimentos. Expandir a produção de carnes exigirá novas e extensas áreas, para pastagens ou plantação de grãos – o que significará mais desmatamento e perda da biodiversidade no mundo. Uma dieta de carnes exige de duas a quatro vezes mais solo que uma dieta vegetariana, argumenta-se.

E o problema só não é maior porque, enquanto um habitante do Primeiro Mundo consome 80 quilos anuais de carnes, no chamado Terceiro Mundo essa média é de 28 quilos anuais.

Outro ângulo das discussões é o dos métodos de criação. Há 30 anos, levava-se três meses para produzir um frango em condições de abate. Hoje, a média é de 41 dias e a cada ano se reduz um dia. Graças a novos métodos, novas tecnologias, novos promotores de crescimento, novos sistemas de confinamento.

Ainda recentemente, uma instituição que se preocupa com animais, a Compassion in World Farming (CWF), numa ação que levou à Alta Corte de Londres, pediu que fossem declarados ilegais – porque “cruéis” – os atuais sistemas de criação de frangos, visando ao crescimento rápido. Segundo a CWF, os frangos hoje provêem de um “pool” genético cada vez menor – 98% dos que são criados para abate descendem de aves supridas por apenas três empresas. Crescem tão rapidamente que o esqueleto não chega a se formar de todo, com sofrimento intenso. A pressão sobre o sistema cardiovascular – segundo estudo da Universidade de Bristol – é intensa. Grande parte do plantel desenvolve ascite, deficiências no coração, edema no fígado. Por tudo isso, são animais que procuram nos alimentos de preferência fragmentos que contenham analgésicos – o que pode levar a outros problemas para o consumidor. Nos rebanhos bovinos os problemas também são freqüentes, principalmente com bezerros que crescem tanto no útero que as cirurgias cesarianas se tornam quase regra.

Esses e outros problemas levaram recentemente a União Européia a baixar legislação que limita o número de frangos e porcos segundo a área disponível. Em 2006, entrará em vigor nesses países a proibição do uso de promotores do crescimento. Mais um ângulo: a geração pelos rebanhos de gases que intensificam o efeito estufa. São 10% das emissões totais e 25% no caso do metano (que permanece menos tempo na atmosfera, mas tem efeito mais de 20 vezes mais grave que o do dióxido de carbono).

Outro ângulo ainda : consumo de água. Pelo menos 3,5 mil litros são necessários para produzir um quilo de carne de frango, 6 mil para um quilo de carne de porco, pelo menos 15 mil para um quilo de carne bovina. Enquanto isso, um quilo de batatas pode ser produzido com até 500 litros. Terra e água necessárias para produzir um quilo de carne são suficientes para 200 quilos de tomates ou 160 de batatas, segundo o Worldwatch Institute. E as pastagens cobrem um terço das terras no mundo. Não é só. Os efluentes de criações são responsáveis por 50% da poluição da água na Europa e pela acidificação do solo (quando depositados sem tratamento).

São muitos ângulos. E, exatamente por estar assumindo a liderança do mercado mundial de carnes, o Brasil precisa pensar em todos eles. Segurança alimentar, segurança para a saúde do consumidor, sustentabilidade dos padrões de consumo. Não haverá como fugir a todas essas discussões.

Washington Novaes é jornalista

E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

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